sexta-feira, 28 de novembro de 2008

O avesso

Uma mulher determinada. Apesar de em sua vida não ter alcançado grande sucesso profissional, nem ter vivido um grande amor, desses com final feliz pra sempre, ela transformava a felicidade das pessoas que amava em sua própria felicidade. Não era egoísta. Deixou de correr atrás de muitos sonhos para se dedicar a sua família.
Mesmo não sendo a família perfeita, com porta-retratos cheios de sorrisos espalhados pela casa. Casa que, aliás, ainda estava em construção, vinte anos depois. Não tinha móveis planejados, nem uma decoração bem pensada. Não fazia diferença, era um lar, um porto seguro, o seu espaço. Representava bem a sua vida. Fragmentos como peças de um quebra-cabeças que nunca se encaixavam.
Mas ela não parou um minuto de pensar em quem amava. Nem quando foi traída, nem quando foi abandonada. Nem quando todo mundo precisava seguir o seu destino e a distância a separou de quem mais amava. "Quero que meus filhos tenham tudo o que eu nunca tive", sempre dizia, com uma sinceridade e um total desapego a seus próprios objetivos, aqueles que havia deixado pra trás já havia tanto tempo.
Ela não parou um minuto. Ela pode até ter pensado em desistir, mas não desistiu por um só segundo.
Um dia ela acordou, de uma noite mal dormida, sozinha em sua cama. O mundo girava. A sensação era de flutuação, como se nada mais a prendesse ao chão. Quando abriu os olhos e mirou o teto, um redemoinho estava prestes a tragá-la. Ela fechou novamente os olhos azuis, profundos e iluminados, bem apertados. Era a sua única forma de defesa naquele momento. Como se o simples fato de não enxergar, pudesse apagar da sua memória a existência do perigo.
Ela precisava resistir. Não poderia ser sugada. Quando levantou e abriu uma fresta dos olhos, procurando o chão, um abismo se abriu e começava a puxá-la.
Ela voltou para a cama, de olhos cerrados. Ali era seguro. Revirou às cegas o criado mudo em busca de papel e caneta. Ela precisava que soubessem o quanto as amava. De bruços, caneta em punho, suas palavras eram tortas e tremidas, os travesseiros macios não permitiam a firmeza da sua letra arredondada. Só ela sabia o esforço que fazia e o quanto aquelas palavras eram importantes.
Naquele momento, lembrava de cada detalhe da sua vida e se perguntava se aquele seria mesmo o fim. Questionava se tudo o que fizera, se todas as abdicações tinham valido a pena. Ao escrever, lágrimas finas manchavam o papel. Com a mão trêmula, registrou tudo o que precisava ser feito a partir do momento que ela deixasse sua existência às avessas.
Era às avessas que ela imaginava sua vida, sempre. Como se contorcer todos os fatos, falas, pessoas e escolhas pudesse ter dado um destino mais claro e direito a sua história. Mal sabia ela que seu avesso era a forma da vida lhe mostrar que não só as coisas belas e perfeitas podem ser apreciadas. Seu avesso era perfeito a seu modo. O avesso, do avesso, do avesso.
Acabou a carta e, com ela, o redemoinho e o abismo se foram. Como se algumas coisas precisassem ser ditas, mesmo que no silêncio de rabiscos pincelados à lágrimas, para matar tudo aquilo que já não fazia sentido ter vida. Assim, só assim, ela poderia renascer.
E como sempre, ela não desistiu por um segundo. Nem dela, nem de ninguém.

3 comentários:

Tatiana Lazzarotto disse...

Eu me lembrei do filme "As horas" enquanto lia.
Essa parte do abismo, da abdicação é muito triste, mas ao mesmo tempo é tão real... Por que será que isso faz tanto sentido para as mulheres?
Às vezes acho que só uma alma feminina entende outra.

tatilazz.zip.net
mulheresdeathenas.blogspot.com

Unknown disse...

Sua delicadeza me comove.

amanda audi disse...

você está cada vez melhor nesse negócio de escrever. :)