quinta-feira, 6 de novembro de 2008

fotografias não reveladas

sua testa já tinha três rugas bem formadas. aquelas de preocupação. ela vivia com o cenho cerrado. se dizia persistente, mas era teimosa. sempre que acordava, achava que tinha pele demais em seu rosto.  bolsas embaixo dos olhos, bochechas caídas, nariz inchado. ela nunca se via daquele jeito. era um choque acordar toda manhã e não ter tempo de criar sua imagem antes de se olhar no espelho. era um reflexo de algo que ela não queria ser. medíocre.
ela era repetitiva. nunca tinha boas histórias e quando as tinha, contava uma, duas, três, cinco vezes para a mesma pessoa, com detalhes, como um silêncio constrangido de dois segundos, no qual ela olhara para o nada sem saber o que falar e se questionara: o que eu estou fazendo aqui?nada mudou, tudo continua como era e é como se eu tivesse viajado anos luz ao passado, pra reviver uma história que eu já vi o final algumas vezes. é melhor não tocar no assunto. vou fingir que não sei de nada, mesmo sabendo como tudo vai acabar, mesmo que o roteiro tenha exigido algumas mudanças de fala. 
(era também redundante, em coisas completamente sem sentido. releia os trechos de seu pensamento: "nada mudou, tudo continua como era" e "vou fingir que não sei de nada, mesmo sabendo como tudo vai acabar". a redundância é uma tática para assimilação, como se fosse lhe ajudar a não esquecer, NUNCA, daquilo).
sua resposta da fala para as ordens do cérebro era retardada, e era exatamente assim que ela parecia quando emendava um comentário igual ao que alguém já tinha feito. mesmo que pensasse: ei, pensei isso antes, não só repeti o que você falou, já era tarde demais para reparações, então ela ria um risinho falso e continuava no assunto, sempre com argumentos atrasados demais, repetindo finais de frases alheias.
as táticas de assimilação existiam pela memória fraca. precisava sempre que ficassem relembrando coisas que ela já devia saber há muito tempo. determinar o exato momento para parar de persistir em uma causa perdida, por exemplo, era um problema. como se o sofrimento por desistir de alguma coisa, ou de alguém, pudesse ser maior que a dor trazida pela situação. ela computava causas perdidas como perdas. dizia que sabia perder e achava digno chorar por aquilo, mas nunca abandonava o sentimento.
sua memória era boa para últimos momentos, principalmente quando eles eram rompimentos. alguns último momentos já eram antepenúltimos e continuavam gravados fortes em sua memória, como as profundas queimaduras que ela tinha nos braços e que não haviam desaparecido com o tempo. ela sempre se pegava em pensamentos soltos e concluía: sua memória só era boa para as recordações erradas, como aquelas fotografias que não valiam a pena ser reveladas.

3 comentários:

amanda audi disse...

MUITO bom.

Unknown disse...

Alyne
Sua delicadeza aliada a um olhar apurado resultam em textos encantadores. Parabéns.

PS: Linkei seu blog no meu.

Gungi disse...

Quero sim.. hheueheuhuehehe