sexta-feira, 24 de abril de 2009

Relação saudável

Eu e meu pai sempre estivemos em pé de guerra. Ele nunca acreditou em mim e eu sempre fiz de tudo pra ele quebrar a cara. Foi assim no vestibular de Jornalismo da Unicentro. Eram 10 vagas e ele falou que duvidava que eu passasse, queria que eu fizesse química ou nutrição. Eu passei, em segunda chamada, mas passei.
Quando eu fiz o Provar ele não me contrariou, até pagou a inscrição. Mas depois disse pra Giu que sabia que eu não ia passar. Eu passei e fui embora.
Esses são os acontecimentos mais importantes, mas em qualquer coisa era assim. Ele sempre me chamava de retardada e burra e eu só pra contrariar continuava trabalhando com ele e fazendo o melhor que eu podia só pra provar o contrário. Aí ele viajava, me deixava sozinha pra cuidar do restaurante, ou dos restaurantes quando eram dois. Isso eu tinha o que? 13, 14 anos. Eu fazia compras, tentava controlar os funcionários com minha credibilidade reduzida, porque simplesmente meu pai não acreditava em minha capacidade. Mas sempre dei um jeitinho. Faltava cerveja? Lá ia a Aline correr atrás, fosse pedindo entrega ou indo no boteco ao lado. Atendia 50 pessoas com uma puta dor de barriga pelo nervosismo de estar sozinha, cuidando de tudo. Nunca ninguém reclamou e eu cheguei a ganhar R$ 50 de gorjeta.
Quantas vezes meu pai viajava e cliente ligava porque estava em Guarapuava e queria comer, eu abria o restaurante, cozinhava, servia, cobrava e ia embora. Tudo sozinha.
Hoje eu vejo que ele confiava em mim, caso contrário não me deixaria com tamanha responsabilidade. Acho até que era proposital, ele sabe manipular muito bem as pessoas e talvez esse fosse o nosso joguinho, sem o qual nossa convivência não seria possível. Saudável jamais.
Lembro uma vez que a gente brigou feio porque eu fiz alguma fofoca pra minha mãe, devia ter falado que peguei ele com as mãos no peito da secretária. Ele disse que ia fechar o restaurante porque não dava mais pra conviver comigo. Então ele apagou a luz da placa e fechou a porta. Eu acendi as luzes e abri a porta. Ele apagou de novo. Eu acendi mais uma vez. E assim foi por meia hora. Eu era apegada ao restaurante, fazer o que? Dizia que odiava trabalhar por não poder ter uma vida normal como minhas amigas, mas não vivia sem.
Outra vez ia ter um jantar grande, meu pai sempre inventava umas promoções e a casa enchia. Ele comprou umas frutas pra arrumar uma mesa. Eu derrubei uma melancia e ele se descontrolou, me xingou de tudo um pouco e eu mandei ele à merda. Fui embora, juntei minhas economias e viajei pra Curitiba. Sem contar pra ele. Fiquei aqui umas duas semanas comendo só McDonalds e dormindo na casa de uma prima da Ju. Acabou a grana e eu voltei. Ele não pediu desculpas, mas eu também voltei a trabalhar.
Um dia, cansei de tudo. Como era impossível conversar com ele, escrevi um e-mail. Não lembro exatamente o conteúdo. Sei que eu falava sobre tudo o que pensava e sentia naquela época conturbada da minha vida adolescente. Tinha 17 anos. Mandei o e-mail antes de ir pra casa. Quando estava deitada ele ligou. Fingi que dormia. 5h da manhã o telefone tocou. Meu pai tinha batido o carro e estava no hospital. Acho que nunca me senti tão culpada em toda minha vida. Fui até o local do acidente, antes mesmo de ir pro hospital. Não sei como, mas ele bateu na traseira de outro carro - por sorte ninguém se machucou - e bateu num muro. Foram 17m de freada e quando o velocímetro travou ele estava a 100 km por hora.
Quando cheguei no hospital ele estava no ambulatório, um corte no supercílio e tomando glicose. Uma costela trincada. Se ele estivesse usando cinto talvez não tivesse sofrido nada. Ele me abraçou e chorou. Eu também chorei. Mas não falamos nada. Nem uma palavra. Nunca mais se tocou no assunto.
No mesmo dia eu tive que andar uns 5 km pra comprar uma cinta pra costela trincada, fazer compras e abrir o restaurante sozinha. Foi assim até ele se recuperar totalmente. Mas acho que ninguém nunca se recupera totalmente de um acontecimento como esse. Eu nunca me recuperei. Sei que de ruim a situação passou pra fudida. O carro, novo, não tinha seguro. Mas eu já era acostumada com esse jeito largado de ser do meu pai. Sempre foi assim e nunca vai mudar.
(Estou escrevendo demais, eu sei, mas eu preciso chegar a algum lugar, que não sei onde é).
Acho que o que eu quero dizer é que, por mais porra louca que seja o meu pai, ele é ele mesmo. Não se encaixa na sociedade. Não se encaixa no papel de pai. Não de um pai normal. Não me lembro de ele ter me perguntado algum dia como eu ia na escola ou na faculdade, qual era minha opinião sobre qualquer coisa, se tinha feito o dever de casa ou se precisava de ajuda. Ele sempre foi mais preocupado em aproveitar ao máximo a vida, sem pensar com o que poderia acontecer no outro dia. E eu acho que ele está certo, apesar de achar que jamais vou conseguir ser igual a ele. Mesmo porque, eu sempre tentei ser o oposto só pra provocar e gerar discussões intermináveis nas quais ele repetia incessantemente: você não sabe de nada. E, de fato, não o sei.
O que eu sei é que, convivendo com ele e, mesmo não sendo igual a ele, eu não sou igual a ninguém. Pelo menos não sou igual a nenhuma das meninas da minha idade e nem nunca fui há 10 anos atrás. Acho que os pais sempre tentam esconder os problemas dos filhos e eu estava sempre envolvida em todos os problemas da família, que pra ele nem eram nada de mais.
Ele é, no fundo, uma criança. E crianças são sinceras, boas e ingênuas. Lembro que um dia a Giu me falou que ele não poderia ser médico, ou nunca seria um médico rico. Atenderia todo mundo que precisasse, sem se importar se o paciente podia pagar ou não. Ele não se importa em receber contas, nem tampouco em pagá-las. E é verdade. Ele não se encaixa nesse mundo.
Mas hoje, ele acredita em mim. Ele tem esperança no meu sucesso profissional, mas não sabe que eu preciso que ele duvide de mim. Porque isso nunca vai mudar. Eu preciso desse impulso pra conseguir alguma coisa, só pra jogar na cara dele depois. Por estar na merda e enxergar em mim sua salvação, ele resolveu acreditar em mim. E hoje, pela primeira vez em tanto tempo, ele pediu desculpas por alguma coisa. Por não ter dinheiro pra me ajudar com as despesas da formatura.
Pai, isso não pode. Você precisa duvidar de mim, dizer que eu sou um lixo, pra que assim, eu encontre forças só pra te provar o contrário.

3 comentários:

Tatiana Lazzarotto disse...

Aline, não tenho nada para dizer. Vc é foda. Vc me fez parar atônita e ler esse texto de um golpe só, como quem sorve um remédio amargo de um gole só.
Sempre achei q se eu fosse escrever sobre meu pai teria de escrever um livro, não um texto. Mas vc conseguiu resumir uma convivência de anos em linhas totalmente condizentes e comoventes.
As desculpas pelo comprimento do texto foram totalmente desnecessárias.
Beijos

mau disse...

Concordo com o comentário abaixo.
Ou acima. Não sei.

Hm, hoje eu ví sua mãe na loja.
Ela está com um belo corte de cabelo.

amanda audi disse...

que massa esse texto. ainda temos muito o que conversar, apesar de tantas conversas que já tivemos...